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segunda-feira, 6 de maio de 2013

A criatura

Pobre criatura com emoções demasiadas vagou pelas ruas procurando semelhante, não encontrou. Vasculhou os confins do mundo e nada achou além de sentimentos indesejados.

Encontrei-a vagando por uma rua em Londres, pálida, parecia aflita e, ainda assim, resquícios de emoções ainda podiam ser notados. Paguei-lhe, com o pouco dinheiro que tinha comigo, um café. Estava ansiosa para ouvir suas palavras e lhe fazer as tantas perguntas que ecoavam em minha cabeça desde que tomei conhecimento de sua fascinante história.

Allima parecia cansada de ter que correr de suas emoções, olhou para mim e começou a contar sua história.

“Saiba que não é uma opção, na verdade acredito piamente que somos destinados a carregar certos fardos. O meu a primeira vista pode não lhe parecer pesado, mas acredite emoções demais machucam tanto quanto qualquer outra coisa.”

– ela parecia estar imersa em pensamentos, era como se não notasse minha presença, como se estivesse num monólogo. Após uma pequena pausa a doce criatura respirou fundo e prosseguiu. -

“O começo é sempre difícil, ou pelo menos é o que as pessoas querem que acreditemos. aprender é difícil, não tenho dúvidas disso, mas será que aprendemos algo mesmo? Não, todos aqueles que acreditam ter domínio de alguma técnica estão muito enganados, não aprendemos nada por completo até o dia de nossa morte.”

Não sei exatamente como começou, peço que me perdoe por isso, sou apenas uma criatura destinada a sofrer por ter algo que falta nos outros. Quando se tem emoções e sentimentos demais é natural que você acabe se machucando com mais freqüência que as pessoas normais e talvez isso nem seja grande coisa no final de tudo.

É difícil ser a última pessoa que tem esse fardo. Não sei até que ponto alguém é capaz de entender isso, mas nosso propósito é procurar semelhantes para dividirmos experiências e tudo mais que possamos dividir, deste modo… Como irei compartilhar algo?

Guardo tudo para mim, lembranças, arrependimentos, felicidades, mágoas, está tudo aqui”

– ela encostou a cabeça na mesa e colocou suas mãos sobre ela. Parecia estar confusa, sem saber por onde continuar levou um tempo até organizar seus pensamentos -

“Vê? Eu nem ao menos posso escolher as palavras com clareza, talvez essa conversa não mude nada na sua vida, mas esse episódio seguirá comigo até o fim dos dias, assim como todos os outros.

Era uma daquelas noites em que tudo que poderia dar errado realmente acontece. Eu estava sozinha e todos ao meu redor eram completamente diferentes de mim, não em uma ou duas características, elas eram todas tão diferentes de mim e tão iguais entre si.

Não pertenço a esse círculo, entende? Sou aquilo que vocês costumam chamar de ‘criatura’, não me incomoda, não mais.

Deite-me no chão e olhei para cima, fiquei um bom tempo olhando o nada enquanto palavras ecoavam em minha cabeça. Após fechar os olhos por alguns segundos, decidi que era hora de sair de lá, de conhecer o mundo e procurar uma cura, algo que me fizesse ser normal, me transformasse em uma pessoa como você.

No meio das minhas andanças pelo mundo me perdi, passei anos tentando viver como vocês, eu tentei, mas foi difícil, vocês tentam com todas as forças forjar sentimentos que me parecem tão naturais, tão espontâneos. O dia que vocês aprenderem que amar não é relacionado a querer ter domínio pelo outro, aí sim, vocês poderão amar.

Senti afeto diversas vezes, por pessoas que partiram meu coração. Cega pelas circunstâncias, pela crença de que talvez encontrasse uma outra ‘criatura’, cedi sentimentos a pessoas que não mereciam.

Conviver com vocês me fez confundir várias coisas. Houve inicialmente uma grande confusão de sentimentos, essa veio com terríveis momentos de tristeza e melancolia, sempre seguidos de um arrependimentos sem tamanho. Quando a grande confusão de emoções se iniciou eu já não sabia distinguir sentimentos e não conseguia controlar mais nada.

A instabilidade é um resultado de emoções desordenadas, sabia? Mudanças bruscas de humor, ataques de histeria seguidos de momentos de felicidade extrema, tudo isso sem qualquer motivo. Minto, qualquer gesto de terceiros era um motivo, qualquer ação dirigida ao meu ser era motivo. Uma afirmativa, uma negação, o silêncio.

O que me manteve sã? Não se engane, eu não estive bem assim durante todo esse tempo. Pensamentos invasivos tomaram conta de mim por diversas vezes.”

- Allima levantou a manga esquerda de seu suéter e revelou uma grande cicatriz em seu pulso esquerdo –

“Não estou livre do sentimento de culpa também. Por mais difícil que seja viver no mundo de vocês, nunca consegui desistir. Acredito que você julga conhecer toda a minha história, não é mesmo? Não deixe te enganarem, não sou o monstro que todos descrevem.

É engraçado como o diferente pode ser colocado como ruim! Tudo por causa de sentimentos em demasia. A maioria das histórias que você ouviu sobre mim certamente não passa de mentiras.”

- Olhei-a incrédula, se fosse mesmo tudo mentira por qual motivo ela permitiria que aquelas histórias fossem adiante? Antes que eu pudesse lhe fazer qualquer pergunta, ela me respondeu –

“É incontrolável, não há como controlar o que as pessoas dizem. Quando você desmente algo, surge alguma outra coisa em algum outro lugar.”

- Ela sorriu –

“Muitas pessoas já passaram pelo meu caminho. A mulher com muita pressa, a com muito desejo, as gêmeas aflitas por diversão, o homem com medo da vida, o sem ambições, a mulher das medidas drásticas, a megera, houve até, entre todos esses inúmeros personagens, um homem do futuro.

A mais especial para mim? Não posso revelar isso ainda.

Todas essas pessoas não sabiam de seus sentimentos e muito provavelmente ainda não sabem. Vocês se julgam tão incrédulos, tão céticos. Os sentimentos estão todos aí, vocês é que não conseguem e não querem dar nomes a eles e usá-los da maneira correta.

Sou uma criatura. Uma criatura que tem como fardo colocar suas emoções como prioridade, nos lugares errados, nas horas erradas. É o meu fardo. “

- Antes de beber um pequeno gole de café Allima balbuciou algumas palavras que eu não consegui entender. –

“Dar importância a cada acontecimento, por mais insignificante que ele seja, é uma das coisas pelas quais eu mais me queixo. Quando você guarda tudo você tende a procurar só eventos bons que gerem boas memórias, isso não é nada saudável. Sentimentos e emoções consideradas ruins enobrecem sentimentos considerados bons, os tornam mais preciosos.

Você foi levada a acreditar que tudo é passageiro, pertencente a fases. Fases que por sua vez vem e vão para nunca mais voltar. Gostaria de poder acreditar nisso, mas minha vida se resume numa única fase, num único longo momento.

Vocês não estão errados em todos os comportamentos. Sinto inveja de algumas atitudes. Sinto inveja de que, mesmo sem sentir as coisas de verdade, vocês sejam livres de tudo o que eu não sou, até o maior condenado de vocês é mais livre do que o meu ser. “

- Pobre criatura confusa, Allima se contradizia a cada momento. O tempo havia passado rápido. Eu estava atrasada, decidi perguntar-lhe algo antes de partir. “Por que permitiu que eu tivesse contato com você? Por que eu? Por que me contar sua história?”, ela riu antes mesmo que eu concluísse minhas perguntas –

“Você não entende não é? A minha história e tão sua quanto minha, querida. Você faz parte do que sou. Há muito te procuro e você mal se lembra de mim, fui apenas parte da primeira fase, não lhe culpo por ter esquecido e, acredite, ressentimento definitivamente não é um sentimento ligado a você.

Você não pode ser tão fria, tão insensível e tão coerente quanto quer aparentar ser. Você faz parte de mim e nada mudará isso.

O que faltava para eu me tornar como todos os outros? Eu precisava desse encontro, precisava desse diálogo, dessas explicações. Eu te conheço tão bem e você... Bem, você pensa saber, mas não sabe nada de mim. “

- Não entendia mais nada que ela dizia, era como se falasse com alguém com memórias falsas todo esse tempo –

“Não escolhi você, querida, você me escolheu e apareceu quando eu precisei há muito tempo atrás para depois ir embora em busca do seu próprio caminho. A criatura que deixou seu criador e todas as memórias.

Eu criei você, Alana.

Você só é quem é por minha causa, por causa dos meus sentimentos que você é incapaz de entender e aceitar. Dentro de você estão todos os sentimentos e emoções que não me foram permitidas, toda a minha ambição, todo o meu ceticismo, toda a minha falta de credo. Esse é o fim, nos tornamos apenas uma agora e é importante que você continue por mim.

Você foi a mais importante no meu caminho, Alana. “

- Estava estarrecida por toda aquela história, como? Como tudo aquilo podia estar acontecendo? Fechei os olhos por instantes e senti como se emoções estivessem invadindo-me pouco a pouco, lentamente. Não era agradável, doía.Eu me sentia como uma criatura, diferente das outras, diferente de tudo. Quando abri os olhos não havia mais criatura diante de mim, Allima havia desaparecido, corri para fora do café, procurei-a pela rua, não a encontrei. –

- Após dias, semanas, meses, me dei conta de que talvez ela estivesse certa, talvez nosso encontro tenha sido o final da linha para ela, tenha sido o fim. Talvez fôssemos agora uma coisa única, criatura e criador, convivendo e compartilhando emoções e sentimentos, equilibrando-os e balanceando-os. E talvez esse fosse meu fardo, carregar comigo novos sentimentos detestáveis até o fim de meus dias. -

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